Pragmatismo artificial
Uma tentativa de argumento sobre as IAs.
O sistema educacional moderno tem sangrado bastante com a chegada das inteligências artificiais. Toda hora explode algum escândalo mostrando como alunos e professores estão se utilizando destas tecnologias para burlar suas obrigações dentro do processo educativo. A impressão geral é que todos estão trapaceando, ainda que em diferentes graus.
Isso, porém, não é uma novidade para quem observa as coisas mais de perto. Desde sempre a maioria dos alunos entregam trabalhos de baixo nível, com plágios descarados, citações inventadas, argumentos vazios e sem o mínimo de esforço intelectual. Para estes, as IAs são apenas mais uma ferramenta para que eles possam trapacear dentro do sistema educacional moderno.
Da mesma forma, grande parte dos professores sempre ministraram suas aulas sem o mínimo de originalidade, se valendo de inúmeras muletas intelectuais — como planos de aula roteirizados e aulas feitas pelas editoras dos livros didáticos (que geralmente ficam no final dos volumes, junto às respostas, nas versões dos professores). Para estes, as IAs são apenas mais uma possibilidade de garantir seus salários até o fim de suas carreiras com o mínimo de esforço possível.
Ou seja, a verdade é que as IAs não são um grande problema para a educação moderna, uma vez que todos estão trapaceando há tempos dentro deste sistema, muito antes dessa tecnologia existir.
A discussão, portanto, deveria ser menos superficial.
O que o sistema educacional moderno promete? O que ele entrega verdadeiramente? Os seus resultados são equivalentes aos investimentos realizados? Se quisermos radicalizar ainda mais, poderíamos até questionar sobre qual a real função daquilo que entendemos como educação moderna.
Porque é muito fácil colocar a culpa dos vícios e contradições deste sistema em agentes etéreos — celulares, inteligências artificiais e outras tecnologias —, como se tudo estivesse funcionando perfeitamente antes deles aparecerem. Porém, o modelo instrucional moderno está em crise há (pelo menos) mais de um quarto de século, piorando gradativamente.
Há tempos, a educação transformou-se em uma simples ferramenta de controle social mediada por interesses financeiros. Nas instituições públicas, ela é somente uma desculpa para manter os jovens entretidos e entediados obrigatoriamente durante algumas décadas. Nas particulares, a lógica é a mesma, porém sem algumas das selvagerias insalubres que norteiam as entidades estatais. Aprender algo ou não dentro dessa lógica tornou-se um mero detalhe.
Dessa forma, não há muito o que fazer: se a finalidade da educação moderna é apenas o cumprimento de obrigações progressivas, tal qual uma gincana, que terminam com a emissão de um diploma que apenas chancela a consumação das etapas burocráticas deste processo, então a utilização das IAs para “vencer esta gincana” torna-se um simples recurso para auxiliar a jornada do aluno.
Agora, se a função da educação moderna é algo que precisa situar-se além da burocracia intelectual, então de fato temos uma bomba atômica nas mãos — capaz, inclusive, de implodir o próprio sistema educacional vigente.
Porque as inteligências artificiais vieram pra ficar, não tem jeito.
Dos procedimentos mais simples às demandas mais complexas, estas tecnologias serão utilizadas cada vez mais, em várias esferas de nossa realidade. É claro: não de uma forma mágica, como tem sido vendido por alguns futuristas mais deslumbrados, e sim de uma forma bem mais funcional e pragmática, a fim de melhorar e otimizar processos.
Essas tecnologias são equivalentes aos teares mecânicos no início da primeira revolução industrial — e também como o surgimento dos computadores pessoais conectados à internet, no século passado.
Ao contrário do que os românticos e os idealistas acreditam, elas irão destruir (sim) inúmeros postos de trabalhos, levando profissionais e profissões inteiras para a lata do lixo. Óbvio: não da forma assustadora que os arautos do apocalipse tecnológico estão pintando, e sim de uma forma (novamente) mais funcional e pragmática.
No campo das letras, que é a minha área de intenção, acredito fortemente que dentro de cinco anos ninguém mais saberá se um texto foi escrito por um humano ou por uma máquina. E quando eu falo “texto”, me refiro a todos os gêneros existentes: mensagens, e-mails, avisos, informativos e até mesmo livros, pesquisas e estudos — com maior ou menor nível de robustez.
Haverá tentativas de boicotes, criação de comitês e o delineamento de eventuais políticas de uso para as IAs em alguns lugares, é claro. Mas tudo isso certamente não passará de tentativas frustradas de conter a gigantesca torrente de facilidades oferecidas por essas tecnologias. E como não é segredo para ninguém, o ser humano se apaixona rapidamente por facilidades — e dessa vez não será diferente.
Esqueça, então, os discursos dos pretensos apologistas da humanidade, que adoram dizer que “as inteligências artificiais são burras”, ou que “as inteligências artificiais não são nem inteligentes, nem artificiais”, pois elas vieram para redesenhar grande parte da sociedade como conhecemos.
É claro que ainda ocorrerão bizarrices e escândalos envolvendo essas tecnologias, principalmente na área das ciências humanas, como os recentes casos da editora Kotter e das universidades britânicas — revelados pelo jornal The Guardian. Porém, até mesmo situações como essas deverão ser mitigadas em breve, tamanho o potencial futuro que as IAs têm de simular (com cada vez mais detalhes) a escrita humana básica.
Não me considero um futurista, tampouco um arauto do apocalipse tecnológico. Contudo, não há como negar a realidade quando ela se mostra revelada (sem filtros) diante dos seus próprios olhos.
E a realidade é que as inteligências artificiais ajudarão a construir, para o bem e para o mal, uma sociedade diferente, cada vez mais pragmática e bem menos humanizada. Esta será a grande ruptura.
Infelizmente, como sempre ganhamos e perdemos algo em toda ruptura, dificilmente teremos novas revoluções literárias neste ambiente de textos automatizados e gerados pelas inteligências artificiais. Ainda teremos muitos livros, obviamente, mas eles tenderão, salvo eventuais exceções, a ser cada vez mais pasteurizados e voltados ao entretenimento vazio e ao consumo rápido.
E sem livros interessantes, como bem sabemos, dificilmente haverá alguma primavera de ideias frescas e originais circulando pelo mundo, o que certamente nos manterá presos nas mesmas ideias e concepções que construíram o atual (e horroroso) estado de coisas em que vivemos — mantendo-nos presos, por tempo indeterminado, às vontades e agendas perniciosas de tecnocratas, políticos, ideólogos, cientistas, lobistas, burocratas e outros grupos de pressão sociais.
No Brasil, especificamente falando, a situação tende a ser um pouco mais complicada e catastrófica. Afinal, para pensarmos de forma honesta sobre qual será o real impacto das inteligências artificiais na sociedade brasileira, temos que realizar uma equação macabra, com dados nem um pouco animadores.
Eis os dados:
Temos um sistema educacional em crise, que não consegue entregar o básico do alfabetismo. Temos uma sociedade iletrada, que lê cada vez menos. Temos uma das forças de trabalho menos produtivas do mundo. Temos uma geração cada vez mais desamparada, ansiosa, depressiva e entediada. Temos um estado inchado, incapaz de prover serviços mínimos à população. Temos um povo viciado em redes sociais e fraturados pela polarização política.
E temos, no meio de tudo isso, uma nova tecnologia que tende a redesenhar completamente a sociedade como conhecemos — não de forma mágica ou assustadora, repito, mas de forma gradativamente pragmática e objetiva —, modificando de forma radical a nossa relação com o trabalho, com os estudos, com a política, com o entretenimento e com os relacionamentos interpessoais.
O resultado dessa equação, então, não me parece ser o mais bonito de ver.
Ainda que seja um quadro realista, eu sei que é muito chato ter que olhar para as coisas de forma negativa. Contudo, não há como não ficar preocupado com o que está a caminho, tanto no mundo, quanto no Brasil — pois não estamos nem um pouco preparados para o que essa iminente ruptura pragmática irá trazer.
O que está acontecendo no sistema educacional atualmente é apenas um prenúncio de algo muito pior que está por vir: a obsolescência total de visões de mundo consolidadas há séculos, e a eventual substituição de sistemas complexos por um tipo esquizofrênico, anódino e autoritário de pragmatismo social mediado por algoritmos de predição e modelos de LLM.
Podemos, é claro, fingir que nada disso é um assunto importante. Faz parte. Podemos, quem sabe, até debochar e desacreditar do que se avizinha. Ou podemos entender o óbvio: neste momento, estamos muito fodidos e é só uma questão de tempo até que uma grande parte das pessoas se dê conta disso.
